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BORRA: PRODUÇÃO, CIRCULAÇÃO E FALHA

Curadora Gabriela Motta, Galeria Ista, 2022

BORRA - DA VIOLÊNCIA, DAS IMAGENS, DO QUE RESTA

A atmosfera é grave, potencialmente tátil, estranhamente silenciosa.

Armas, acidentes, enchentes, gentes sem rosto ou sem alma, gestos perdidos em sua repetição entrópica, aquilo que resta em abundância – como pode uma usina nuclear ser abstrata? O que acontece quando tudo se torna imagem?

Essas interrogações emergem da série de obras de Eduardo Motta reunidas na exposição Borra – produção, circulação e falha. Partindo de fotografias e vídeos free licence, de revistas de arte ou de tiro, de registros amadores das redes sociais, ou daquilo que é resíduo na indústria metalúrgica, o artista se propõe a encarar o universo dos sistemas de produção e circulação de imagens e produtos. O que surge desse enfrentamento são trabalhos prenhes de contradições: como achar “bonito” uma cena de violência ou toneladas de algo “sem valor comercial”? Como encarar um conjunto de azulejos, elemento decorativo por excelência, cuja imagem a repetir-se em seus módulos é a de uma usina nuclear?

É a perspectiva de falha sugerida no título da mostra que nos permite observar essas obras por um viés que aponta para aquilo que nos escapa, algo que vá além de uma leitura crítica do esvaziamento das imagens em tempos de vida midiatizada. Enquanto nos sistemas de produção em massa falha significa perda ou erro, no campo da arte a ideia de falha muito nos interessa, uma vez que é também a partir dessa noção que podemos expandir esse sistema e seus pressupostos normatizantes. A operação necessária para a falha é uma certa subversão ou desvio daquilo que se espera. Falhar de novo, falhar melhor, como diria Samuel Beckett em Pra Frente o Pior.

A obra Borra, que dá nome à exposição, pode ser vista como a síntese de uma certa subversão das finalidades dos materiais manipulados pelo artista. Composta por seis toneladas de peças de uma liga metálica, resíduo absurdamente abundante da indústria metalúrgica essas peças nos desorientam quanto às suas propriedades físicas – seu brilho metalizado de aparência tátil esconde o quanto são ásperas e pesadas. Ao mesmo tempo, agrupadas ao centro da galeria acabam por formar uma espécie de barricada, uma trincheira em si agressiva, que todo tempo aponta para aquilo que está nas paredes do espaço. Estamos cercados por imagens apropriadas e manipuladas por Motta, nas quais a violência, a exaustão ou a incoerência são igualmente sinais de uma espécie de anestesia geral da nação.

Anestesia que perpassa os vídeos da mostra. Em Não Factível mãos serenas empenham-se em desenrolar uma trama de fitas adesivas ao passo que em The Meeting vários atores se revezam em ocupar diferentes posições em uma cena corporativa – negros, asiáticos, mulheres, ora são diretores, ora são funcionários. Se tudo se molda conforme o gosto do cliente, montar em sequência essas cenas sem continuidade ou desgrudar em vão um bolão de fita tape colorida é, no mínimo, desrespeitar as regras do jogo da linguagem comercial, evidenciar o nonsense, apostar na falha.  

Já em Senso e em Bala Perdida, obras que se valem de fotografias da Artforum e de clubes de tiro, o desvio propõe uma construção narrativa a partir da manipulação técnica. Desfocadas e associadas em duplas, no caso de Bala Perdida, as fotografias sugerem equivalência entre os pares de imagens, e um torpor uniforme toma conta dos conjuntos. Em Senso, rostos em close, também desfocados, têm todos seus buracos preenchidos por manchas vermelhas. Posicionadas frente à frente Senso e Bala Perdida vibram a atmosfera de toda a exposição em um diálogo mudo entre armas apontadas e corpos inanimados. Da mesma forma, conversam as obras Guardião e Malfunction. Estilizadas pelo uso de cores em alto contraste, um soldado sentado, no primeiro caso, e um veículo acidentado, no segundo, são ilustrações de máquinas de guerra: não falam de um conflito bélico específico nem de um acidente preciso, mas sim de uma certa platitude das imagens, da (in)capacidade de nos comovermos diante delas.

Talvez seja para isso, para uma relação no mínimo bizarra com a tragédia, que o trabalho Veneza aponta. Recolhidas em redes sociais, as fotografias de pessoas pousando em frente de uma das tantas enchentes que acomete a cidade italiana estão dispostas em pequenos dispositivos que nos fazem repetir o gesto de quem as vê no telefone celular. O desconforto da imagem transborda para o espaço do espectador que reencena a performance do sujeito da foto.

Por fim, Plano Nuclear/ Tipologia 1, 2, 3 e 4 propõe abordagens ainda mais agudas das subversões, desvios e desconfortos antevistos nas demais obras da exposição. Partindo sempre de uma mesma fotografia de um reator nuclear coletada em um banco de imagens, Eduardo vai testando até que ponto essa figura pode se transfigurar em paisagem, em pintura, em assombração, acumulando rastros de sentidos. Uma pintura sobre feltro, um “plano” de azulejos, uma imagem desfocada, uma quase paisagem da potência letal encerrada em um reator atômico, são possibilidades de abordagem de um mesmo referente. No entanto, nos falam sobretudo do jogo das manipulações, das versões, das funções das imagens; nos falam dos sistemas de produção de sentidos e de objetos, da circulação e do consumo das imagens de um modo ambíguo.

Conviver com as obras de Eduardo Motta é enfrentar o pensamento de que vivemos num momento grave, de significados estilhaçados, de ausência de referências concretas, de palavras vazias e repetidas à exaustão, em uma atmosfera que mais do que nunca necessita da falha.

Gabriela Motta

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Eduardo Motta - Porto Alegre, RS | Brasil - em.eduardomotta@gmail.com - Telefone: (51) 9 9909-4000

 © 2023 por Sinara da Rosa.

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